Luiz Eduardo Costa
Luiz Eduardo Costa, é jornalista, escritor, ambientalista, membro da Academia Sergipana de Letras e da Academia Maçônica de Letras e Ciências.
TEXTOS ANTIVIRAIS (52)
16/03/2021
TEXTOS ANTIVIRAIS (52)

A MÉDICA E O MONSTRO

(A Dra. Ludhmila e os sustos que levou em Brasília)

A médica Ludhmila Hajjar, mulher luminosamente sensata e inteligente, além do vasto conhecimento na área da saúde, sendo uma humanista, deve fazer constantes incursões pelo terreno extremamente fértil da literatura.

Entre os clássicos que percorreu, não lhe teria escapado a atração por um romance estilo terror, onde o personagem central é o exemplo clássico da dubiedade de comportamento. Robert Louis Stevenson, o autor, monta o seu drama no choque de consciência do médico Dr. Jekill, transitando entre a prática do bem e a atração irresistível pela crueldade. No médico, refugia-se o monstro, o serial killer Dr. Hyde, diabólica transfiguração, que se concretiza a partir do uso de uma droga que o faz despertar. Ou seja, o autor subverte também o conceito de ética, quando parteja o mal, que é gestado nas entranhas imprevisíveis da virtude.

Quando o monstro aparece morto, vestindo o jaleco que seria do dr. Jekill, resta, para as pessoas, a impressão de que ele teria matado o médico, e usado a sua roupa de trabalho.

Assim, a identidade do monstro permanece uma incógnita.

Estava a médica Ludhmila em São Paulo, como sempre, envolvida integralmente na sua cotidiana atividade de salvar vidas, quando, quase surpreendentemente, recebe um convite do presidente Bolsonaro, que desejava conversar com ela em Brasília.

Os articuladores da sua possível ida para o Ministério da Saúde já lhe haviam avisado sobre a pauta da reunião.

Observadora atenta dos métodos equivocados que estão fazendo do Brasil o núcleo ameaçador de uma pandemia incontrolável,

que dizima os brasileiros, e põe em alerta o mundo, a médica deve ter enxergado, ali, uma rara oportunidade de pôr em prática as recomendações da ciência, e ajudar o Brasil a reverter a fatal trajetória ao despenhadeiro.

Com clareza, ela expôs ao presidente o que considerava imprescindível realizar, diante da urgência catastrófica em que nos encontramos.

Mostrou que o governo central, através do Ministério da Saúde, deveria coordenar as ações contra a pandemia, para isso, estabelecendo diálogo e cooperação estreita com a ciência, os governadores e prefeitos, buscando pleno entrosamento internacional para somar experiência e sintonizar ações.

Mostrou que era imprescindível, a partir do conhecimento já existente, adotar um protocolo único de tratamento contra a Covid, evitando-se a disseminação de supostas drogas milagrosas, e pacificando o clima absurdo de turbulência ideológica, que envolve um assunto essencialmente técnico, a exigir racionalidade, equilíbrio e sentimento humano.

Certamente, mesmo havendo discordância, se poderia aplainar divergências e estabelecer algum consenso, enfim, iniciar um diálogo que nunca existiu, e alcançar-se, dessa forma, um avanço concreto, onde se estabeleceu uma guerra de versões e a ofensiva de falsidades e preconceitos.

Feito isso, viria o apelo aos brasileiros, a mensagem de união e de luta comum, o entendimento de que a guerra teria de ser contra o vírus, jamais entre nós mesmos.

E começaria, então, a busca do tempo perdido, com a intensificação das negociações para a aquisição dos imunizantes, e o uso eficaz do sistema do SUS, para alcançar níveis elevados de vacinação. No ritmo que estamos, atravessaremos a década sem concluir a imunização esperada.

O que pretendia fazer a Dra. Ludhmila seria, exatamente, o que recomenda a ciência, o que a experiência em outros países já demonstrou ser o melhor caminho.

Quando ela terminava sua fala, diante do silêncio do presidente visivelmente incomodado, resolveu relatar o constrangimento, as ameaças, a tentativa talvez de assassinato ou sequestro que sofrera ao chegar em Brasília, a virulência de uma campanha difamatória e grosseira nas redes sociais alimentadas pelo extremismo ideológico. Então, ouviu a frase curta que a convenceu de que ela, a médica, estava diante do monstro: “Faz Parte”.

É, diríamos nós, faz parte, faz parte do martírio de uma desamparada Nação, atravessar este período assustador e agônico, onde a ficção de imaginárias monstruosidades transformou-se na realidade, sentida e vivida, do nosso cotidiano de tormento, dor e morte.

Faz parte……….

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