Luiz Eduardo Costa
Luiz Eduardo Costa | Jornalista
TEXTOS ANTIVIRAIS (27)
19/08/2020
TEXTOS ANTIVIRAIS (27)

CONSERVADORISMO OU ESTUPRO? (27)

(Dentro do hospittal a criança estuprada e grávida chorava, do lado de fora um tulmuto. Queriam obrigá-la a gestar e parir)

A ideia ou o conjunto de preconceitos conservadores, se levados ao extremo, representam a própria negação ou antítese da evolução humana.

Se o primata que usou o fogo, vivesse num grupo pré-humanoíde de seres apegados ao comportamento conservador, ele teria sido posto a correr com aquela sua invenção demoníaca, pondo em perigo o sossego e a harmonia do bando.

Caso o conservadorismo fosse majoritariamente dominante como um conceito imutável, continuaríamos como servos da gleba, submissos aos senhores feudais, e à autoridade suprema, “conferida por Deus”, aos reis, aristocratas e clérigos. Jamais iríamos além da concepção aristotélica do mundo, isso, no máximo. Isaac Newton, depois de sentir a maçã caindo na sua cabeça, não teria o insight ousado de formular a teoria da gravitação universal. Fez isso com a habilidade de estirar tapetes ao pensamento conservador, que não se sentiu tão agredido na sua visão arcaica universo.

O conservadorismo como arcabouço de estruturas políticas, é nada mais do que a defesa de um conjunto de privilégios, de injustiças que asseguram o conforto sossegado a uns poucos.

Para o resto, sobram os preceitos, os regulamentos rígidos, os dogmas, tudo sob a máscara da defesa de Deus, da família e da propriedade. Deus, não precisa da proteção humana, a família não é construída pelo Estado, e a propriedade, esta sim, do ponto de vista do conservadorismo, necessita de quem a torne intocável, imune a qualquer exigência social, e assim, chega-se ao sonho ultraliberal do Estado Mínimo, todavia, um pitbull atento em defesa das vastas e intocáveis prerrogativas do Mercado, o financeiro, preponderantemente.

Se dependesse dos ranços e mofos aos quais o conservadorismo se apega, não haveria o conhecimento científico. A ciência não avança sem o lastro cultural, sem a ousadia de formular hipóteses teóricas tendo, para isso, a possibilidade de alcançar respostas experimentais. Assim, as bibliotecas, as universidades, seus laboratórios, sempre, ao longo da história humana, foram alvos da fúria ultraconservadora.

Mas há que se fazer uma concessão ao conservadorismo, quando ele não se intromete nos costumes, nem se arroga ao direito de ditar normas para a sociedade; e apenas se faz o zelador discreto e atento de alguns valores éticos, sem os quais o humanismo pleno não se exercita. A defesa da vida é um desses valores. Para isso, é preciso que exista uma visão ética, não deformada por preconceitos, muito menos extremismos ideológicos. Um chinês, Lin Yutang (não se assustem, ele deixou a China antes que Mao Tse Tung completasse a sua “Grande Marcha, e foi ser requisitado shcollar em Universidades americanas, e famoso escritor) pois então, a frase é dele: “Não é extraordinário que uma nação tenha alguns filósofos, mas é terrível que não aceite as coisas filosoficamente”.

Aceitar, filosoficamente, é enxergar com sabedoria, sensibilidade e capacidade de avaliar os fatos; fazendo a pesagem e a medição justa deles, para corretamente interpretá-los e, se necessário, emitir juízo de valor.

Não foi o que aconteceu nesse episódio doloroso, escancarado publicamente da menina de dez anos, que, estuprada por um tio estava grávida.

Criou-se, de imediato, o clima de guerra entre duas facções. Houve protestos enfurecidos na porta do hospital recifense para aonde a criança condenada a dar à luz a uma outra criança, foi levada, em face da negativa dos médicos capixabas em fazer a interrupção da gravidez, já determinada pela Justiça.

Os grupos conflagrados não debateram, não dialogaram, muito menos exibiram argumentos, mas exibiram frases, algumas raivosas, outras invocando a defesa da vida da criança, e satanizando o aborto.

Pouco se tratou da situação da criança engravidada, abusada por um tio canalha. Esse não é todavia um episódio raro, ele se repete todos os dias, na tragédia oculta pela promiscuidade que resulta da miséria, e permanece no anonimato das conveniências sociais, aquelas crostas imperceptíveis da engrenagem hipócrita-oportunista, dita conservadora.

O fato de ser conservador ou progressista não impediria a manutenção necessária de uma mais cuidadosa análise do fato em si, deixando-se para uma outra ocasião a questão central que envolve a proibição mantida, ou a legalização do aborto, que em casos específicos a nossa Constituição já contempla, e parecia até o recente episódio uma questão pacificada.

Não teria parecido suficiente para aquietar os mais extremados, a situação anômala, inusitada, de uma criança gestando um feto em seu útero, não por um ato de amor ou apenas de sexo, inadmissíveis para a idade dela, mas, pior ainda, resultante de uma violência bestial a que foi submetida?

A criança grávida, por medo, insegurança e transida pelo abalo psíquico, não queria continuar a gestação, muito menos chegar ao parto. Uma situação repleta de incertezas, sem a mínima segurança, e mais grave do ponto de vista da sanidade física e mental de uma criança provável mãe. Ela é pobre, vive em situação de risco, como dezenas de milhares de crianças faveladas, mas que não chegam a comover, nem muito menos mobilizar, os que se intitulam paladinos em defesa ardorosa da vida humana. Enquanto eles apareciam nas televisões ou erguiam faixas em frente ao hospital recifense, nos tugúrios das nossas insalubres aglomerações humanas vegetavam famílias, milhares, milhões de famílias sofridas, vulneráveis, sem condições de dar aos seus filhos uma vida com um mínimo de dignidade humana.

Este sim, é o quadro hediondo que necessita ser enfrentado, tanto por progressistas, que se enxergam como portadores avant garde das esperanças de justiça social, como pelos conservadores clássicos, apegados a conceitos que valorizam a vida humana, embora não entendam que a dignidade do homem não é somente uma abstração firmada filosófica ou religiosamente, mas, algo que exige uma estrutura econômica e social em bases equidosas. E isso, o renitente conservadorismo não quer.

Faz lembrar de um boçal aristocrático sergipano, descendente de senhores de engenhos escravocratas. Na casa grande, onde ia nos fins de semana, havia uma senzala quase junto, e em ruínas. Quando lhe perguntaram, certa vez, porque não demolia a precária construção, ou a reformava como memória histórica; ele respondeu com um riso sardônico: “Isso aí é só para mostrar o lugar reservado ao negro, para ele não ficar atrevido como é hoje”.

E ele falava com a convicção orgulhosa de definir-se como um autêntico conservador.

 

Voltar