Luiz Eduardo Costa
Luiz Eduardo Costa, é jornalista, escritor, ambientalista, membro da Academia Sergipana de Letras e da Academia Maçônica de Letras e Ciências.
NOTAS CARNAVALESCAS
07/03/2019
NOTAS CARNAVALESCAS
 

A margem da folia (1) 
 
 
A vinda a Aracaju do governador de Alagoas Renan Calheiros para conversar com Belivaldo deflagrou um processo para construção de uma parceria a começar pela ainda ideia de uma nova ponte sobre o São Francisco. O projeto a ser elaborado seria uma ligação entre Neópolis e Penedo, um custo consideravelmente menor do que a ponte na foz dando sequencia a rodovia completando o trecho da "linha verde" de Salvador a Aracaju que chegaria até  Maceió dai ao Recife. Seria na visao de Marcelo Déda a grande rota do turismo nordestino e ajudando a reduzir o "bolsao de pobreza" que amargura a vida das pessoas no estuario do Velho Chico.
 
O contato inicial dos dois governantes ensejou mais ideias além da ponte para cuja construção nos dois Estados sintonisadamente sairão em busca de recursos e parcerias público privadas sobre as quais tanto se fala e pouco até agora se fez. Sergipe e Alagoas vão tratar juntos de combater a criminalidade permutando informações e partilhando tarefas. Essa seria a ideia básica. Estudos em fase preliminar para a criação de uma barragem de foz no São Francisco tentam demonstrar a viabilidade do projeto que é repleto de questionamentos aguardando respostas plausíveis. A barragem asseguraria um maior volume de água no Baixo São Francisco.
A margem da folia (2)

 
O ex ditador paraguaio Alfredo Stroessner governou o seu infelicitado país por 35 anos, um inatingivel recorde, até mesmo para os carcomidos despotas da América Latina, que se apegavam ao poder e aos seus cofres como cracas malignas impregnadas à corpos doentios.
 
O general Stroessner, deposto pelos seus militares  já de saco cheio com ele, e pressionados  pelo governo norte-americano que mudara de ideia sobre a utilidade dos tiranos, veio pedir asilo ao  Brasil, e ficou morando numa suntuosa mansao em Brasília. O Presidente general Figueiredo concedeu-lhe o asilo, mas o ignorou, e recusou-se a recebê-lo numa visita de agradecimento que Stroessner desejou fazer-lhe. Stroessner, até morrer, viveu mais de vinte anos em Brasília, como um reprobo  de alto luxo, e o governo paraguaio recusou se a receber seus ossos, que permanecem sepultados num cemitério brasiliense.
 
O nosso Presidente  Bolsonaro é, como se sabe,  um homem destituido de vestígios de cultura, transita  com dificuldade pelos assuntos mais comezinhos da administracao pública, não revela qualquer intimidade com a História, muito menos com as sutilezas da diplomacia. Foi ao Paraguai preparar o terreno para a renovacao próxima do acordo de Itaipu, o uso comum da grande hidreletrica binacional, na verdade um investimento só brasileiro. O atual presidente do Paraguai é filho de um dos mais importantes ministro do déspota, que muito o ajudou a roubar e a oprimir o seu povo.
 
O próprio mandatario paraguaio é um tanto contido ao se referir ao ditador, a cuja imagem sebosa ele vem tentando remodelar. O presidente brasileiro então facilitou-lhe a tarefa. Seguindo sem constrangimentos o  que manda o seu coração batendo de fervor pelo figurino ultra-autoritário, o presidente Bolsonaro quase fez saltar da cova os ossos em festa do esquecido ditador, a quem classificou como um grande estadista. Os que ele matou contam se às centenas, os que ele perseguiu, exilou ou mandou prender e espancar, contam-se em muitas  dezenas de milhares, o que ele roubou do seu pobre país, do seu sofrido povo, contam-se em bilhões de dólares. Depois de elevar ao patamar de herói o nefando ditador, o nosso presidente Bolsonaro voltou ao Brasil para cuidar de dar pressa a esperada queda do venezuelano Maduro. Stroessner e Maduro são canalhas da mesma estirpe, mas, ao tratar deles, Bolsonaro joga esterco em um, e ajuda a retirar do esterco moral o outro, que selecionava adolescentes bonitas para "usá-las".
 
Agindo como um estadista?
A margem da folia (3)
 
Em Monte Santo, sertão baiano, um padre velhinho, indiferente aos ventos renovadores da Igreja em plena fase de agiornamento, numa quarta-feira após o carnaval, fazendo a imposição ou aposição das cinzas nos rostos suarentos dos fiéis, já abafados pelo calor que em março ainda madruga, percorrendo as vastidoes solarengas do Raso da Catarina, repetia, o encanecido sacerdote, a cada um daqueles que levemente lambuzava: "Memento hominis pulvere es, et  in pulverem reverteris".
 
Sem atentar para a grave advertência sobre a precariedade da vida, sempre a beira da finitude, os fiéis se retiravam alheios  a  admoestação, mais ainda grave e solene, pela escolha do latin'orio feita pelo padre, apegado, ainda, ao estilo de uma liturgia que impressionava mais pela formalidade majestatica do que pela fluência convincente da palavra.
 
Mas os que viviam naquela época em Monte Santo tinham, ainda, a existência impregnada pela religiosidade que envolve a cidade. Na imponente serra pelo lado do poente, desenha-se, sinuosa e sempre ascendente, ao longo de seis quilômetros, a estrada de pedra talhada, reeditando os passos da Paixão de Cristo. Vai até  o ponto mais alto, onde está a capela, repositório de uma infinidade de ex-votos, que penitentes com os pés sangrando, ou joelhos esfolados carregam, em transe místico. Por ali, em anos imprecisos das décadas finais do século dezenove esteve Antônio Conselheiro. Congregava gente para a sua empreitada de devoção e crença. Construiu aquela obra acreditando na fé que remove montanhas, e que o fez enfrentar um exército.
 
Aquela gente de Monte Santo nem precisaria entender o latim do padre, a própria existência que leva, o clima, o meio, a história, as vicissitudes, fazem com que o retorno ao pó seja visto com resignação decorrente da fé, da sabedoria, ou de um conformismo sem medo.
 
O povo de Monte Santo adquiriu uma espécie de atavica intimidade com  a volta ao pó, mesmo sem sequer ter a convicção do finito-infinito, aquela condição da totalidade universal, que nos faz "pó de estrelas". Isso aconteceu desde que os seus antepassados assistiram a passagem das tropas com fardas coloridas, fuzis, espadas e canhões rebrilhantes, ali acantonadas, antes do estirão longo até "a cidadela de palha e barro", a Canudos. 
 
Depois, viram o retorno , a face ensanguentada da morte recoberta pelo pó das estradas.
 
Hoje, o padre diz em português mesmo: "Lembra-te homem que és pó e ao pó reverterás".
 
E todos, bem antes, quando ouviam sem entenderem o latim, já sabiam disso.
 
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